O Homem de Cabeça de Papelão
João do Rio
No País que
chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem
de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista.
Absolutamente sem importância social.
O País do Sol,
como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos
surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital,
composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e
todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De
modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem
concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os
prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos
proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não
enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada
pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados,
jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a
Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a
cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com
pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente,
possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do
Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!
Precisamente
por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista.
Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira
sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.
Desde menino,
a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só
dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira.
Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível.
Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar,
na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da
família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos
falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor
tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta
própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os
mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os
amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.
Uma só coisa
descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada
do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente,
incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque
quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala
os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só
para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos
delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.
Com o fim de
convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar,
isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à
atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família
em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se
fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e
a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também
para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.
— Ouça!
bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas
seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe,
sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.
— Mas não
quero ser nada disso.
— Então quer
ser vagabundo?
— Quero
trabalhar.
— Vem dar na mesma
coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e
posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.
— Eu não acho.
— É pior. É um
tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma
ilusão. Você está inteiramente doido.
Antenor foi
trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se
dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao
pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má
cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um
ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha
exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de
idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a
inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões
prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o
aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão
não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois
de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que?
É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro
homem!
Um dos seus
ex-companheiros explicou certa vez:
— É doido. Tem
a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não
sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...
O patrão do
último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:
— A perigosa
mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.
—
Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?
Não. Mas podia
prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia,
quem manda na minha casa sou eu.
No País do Sol
o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável,
desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham
lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o
haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência
do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social
compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter
amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham
explorado.
Antenor ria.
Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava
convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse
chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos
alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele
ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável?
Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora
desculpava-o ainda.
— É doido, mas
bom.
Os parentes,
porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o
professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi
expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se
pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de
bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa
hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia,
dizia outra coisa diversa.
— Mas, Deus,
eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...
— É da tua má
cabeça, meu filho.
— Qual?
— A tua cabeça
não regula.
— Quem sabe?
Antenor
começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma
rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor
achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais
uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a
resposta de Maria Antônia foi condicional.
— Só caso se o
senhor tomar juízo.
— Mas que
chama você juízo?
— Ser como os
mais.
— Então você
gosta de mim?
— E por isso é
que só caso depois.
Como tomar
juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor
pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.
Nessas
disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus
olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados
de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.
— Traz algum
relógio?
— Trago a
minha cabeça.
— Ah!
Desarranjada?
— Dizem-no,
pelo menos.
— Em todo o
caso, há tempo?
— Desde que
nasci.
— Talvez
imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de
trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular
bem...
Antenor
atalhou:
— E o senhor
fica com a minha cabeça?
— Se a deixar.
— Pois aqui a
tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...
— Claro. Mas,
enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.
— Regula?
— É de
papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça,
enfiou a de papelão, e saiu para a rua.
Dois meses
depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da
Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os
exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal,
trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os
companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era
maluco.
Antenor não
pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava,
falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas
Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não
desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da
primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama
crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas
da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente
da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente
seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor
esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava
admiravelmente.
Passaram-se
assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de
concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso.
O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas
centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do
relojoeiro e lhe veio a memória.
— Bolas! E eu
que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É
capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma
cabeça de papelão!
Saltou. Entrou
na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.
— Há tempos
deixei aqui uma cabeça.
— Não precisa
dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar
a sua cabeça.
— Ah! fez
Antenor.
— Tem-se dado
bem com a de papelão? — Assim...
— As cabeças
de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.
— Mas a minha
cabeça?
— Vou
buscá-la.
Foi ao
interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.
— Consertou-a?
— Não.
— Então,
desarranjo grande?
O homem
recuou.
— Senhor, na
minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como
perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo
melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de
todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de
exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.
Antenor ia
entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.
— Faça o
obséquio de embrulhá-la.
— Não a
coloca?
— Não.
— V.EX. faz
bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na
vista.
Mas Antenor
era prudente, respeitador da harmonia social.
— Diga-me cá.
Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.
— Qual! V.EX.
terá a primeira cabeça.
Antenor ficou
seco.
— Pode ser que
V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros,
que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios
querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu
continuo com a de papelão.
E, em vez de
viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo
a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi
Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.
O texto acima foi extraído do
livro "Antologia de Humorismo e Sátira", organizada por R. Magalhães
Júnior, Editora Civilização Brasileira — Rio de Janeiro, 1957, pág. 196.
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