Certa vez recebi um desafio de uma amiga enfermeira: falar sobre enfermagem na forma de cordel. Foi um desafio de respeito para mim, pois sei tão pouco - ou quase nada - sobre enfermagem. Ela tinha um trabalho para apresentar em uma certa disciplina na faculdade e a professora exigiu que o resultado da pesquisa fosse apresentado nesse formato poético. Parei por alguns instantes, fiz umas perguntas a ela e - não sei se prestou ou não - o resultado final é este que vocês podem conferir abaixo.
No País que
chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem
de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista.
Absolutamente sem importância social.
O País do Sol,
como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos
surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital,
composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e
todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De
modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem
concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os
prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos
proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não
enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada
pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados,
jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a
Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a
cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com
pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente,
possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do
Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!
Precisamente
por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista.
Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira
sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.
Desde menino,
a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só
dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira.
Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível.
Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar,
na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da
família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos
falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor
tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta
própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os
mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os
amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.
Uma só coisa
descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada
do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente,
incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque
quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala
os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só
para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos
delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.
Com o fim de
convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar,
isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à
atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família
em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se
fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e
a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também
para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.
— Ouça!
bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas
seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe,
sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.
— Mas não
quero ser nada disso.
— Então quer
ser vagabundo?
— Quero
trabalhar.
— Vem dar na mesma
coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e
posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.
— Eu não acho.
— É pior. É um
tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma
ilusão. Você está inteiramente doido.
Antenor foi
trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se
dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao
pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má
cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um
ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha
exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de
idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a
inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões
prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o
aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão
não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois
de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que?
É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro
homem!
Um dos seus
ex-companheiros explicou certa vez:
— É doido. Tem
a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não
sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...
O patrão do
último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:
— A perigosa
mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.
—
Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?
Não. Mas podia
prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia,
quem manda na minha casa sou eu.
No País do Sol
o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável,
desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham
lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o
haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência
do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social
compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter
amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham
explorado.
Antenor ria.
Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava
convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse
chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos
alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele
ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável?
Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora
desculpava-o ainda.
— É doido, mas
bom.
Os parentes,
porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o
professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi
expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se
pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de
bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa
hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia,
dizia outra coisa diversa.
— Mas, Deus,
eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...
— É da tua má
cabeça, meu filho.
— Qual?
— A tua cabeça
não regula.
— Quem sabe?
Antenor
começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma
rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor
achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais
uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a
resposta de Maria Antônia foi condicional.
— Só caso se o
senhor tomar juízo.
— Mas que
chama você juízo?
— Ser como os
mais.
— Então você
gosta de mim?
— E por isso é
que só caso depois.
Como tomar
juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor
pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.
Nessas
disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus
olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados
de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.
— Traz algum
relógio?
— Trago a
minha cabeça.
— Ah!
Desarranjada?
— Dizem-no,
pelo menos.
— Em todo o
caso, há tempo?
— Desde que
nasci.
— Talvez
imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de
trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular
bem...
Antenor
atalhou:
— E o senhor
fica com a minha cabeça?
— Se a deixar.
— Pois aqui a
tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...
— Claro. Mas,
enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.
— Regula?
— É de
papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça,
enfiou a de papelão, e saiu para a rua.
Dois meses
depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da
Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os
exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal,
trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os
companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era
maluco.
Antenor não
pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava,
falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas
Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não
desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da
primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama
crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas
da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente
da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente
seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor
esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava
admiravelmente.
Passaram-se
assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de
concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso.
O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas
centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do
relojoeiro e lhe veio a memória.
— Bolas! E eu
que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É
capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma
cabeça de papelão!
Saltou. Entrou
na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.
— Há tempos
deixei aqui uma cabeça.
— Não precisa
dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar
a sua cabeça.
— Ah! fez
Antenor.
— Tem-se dado
bem com a de papelão? — Assim...
— As cabeças
de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.
— Mas a minha
cabeça?
— Vou
buscá-la.
Foi ao
interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.
— Consertou-a?
— Não.
— Então,
desarranjo grande?
O homem
recuou.
— Senhor, na
minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como
perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo
melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de
todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de
exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.
Antenor ia
entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.
— Faça o
obséquio de embrulhá-la.
— Não a
coloca?
— Não.
— V.EX. faz
bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na
vista.
Mas Antenor
era prudente, respeitador da harmonia social.
— Diga-me cá.
Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.
— Qual! V.EX.
terá a primeira cabeça.
Antenor ficou
seco.
— Pode ser que
V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros,
que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios
querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu
continuo com a de papelão.
E, em vez de
viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo
a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi
Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.
O texto acima foi extraído do
livro "Antologia de Humorismo e Sátira", organizada por R. Magalhães
Júnior, Editora Civilização Brasileira — Rio de Janeiro, 1957, pág. 196.
— Quer assunto para um conto? — perguntou o
Enéias, cercando-me no corredor.
Sorri.
— Não, obrigado.
— Mas é assunto ótimo, verdadeiro, vivido,
acontecido, interessantíssimo!
— Não, não é preciso... Fica para outra
vez...
— Você está com pressa?
— Muita!
— Bem, de outra vez será. Dá um conto
estupendo. E com esta vantagem: aconteceu... É só florear um pouco.
— Está bem... Então... até logo... Tenho que
apanhar o elevador...
Quando me despedia, surge um terceiro.
Prendendo-me à prosa. Desmoralizando-me a pressa.
— Então, que há de novo?
— Estávamos batendo papo... Eu estava
cedendo, de graça, um assunto notável para um conto. Tão bom, que até comecei a
esboçá-lo, há tempos. Mas conto não é gênero meu — continuou o Enéias, os olhos
muito azuis transbordando de generosidade.
— Sobre o quê? — perguntou o outro.
Eu estava frio. Não havia remédio. Tinha que
ouvir, mais uma vez, o assunto.
— Um caso passado. Conheceu o Melo, que foi
dono de uma grande torrefação aqui em São Paulo, e tinha uma ou várias fazendas pelo
interior?
Pergunta dirigida a mim. Era mais fácil
concordar:
— Conheci.
— Pois olhe. Foi com o Melo. Quem contou foi
ele. Esse é o maior interesse do fato. Coisa vivida. Batatal. Sem literatura. É
só utilizar o material, e acrescentar uns floreios, para encher, ou para dar
mais efeito. Eu ouvi a história, dele mesmo, certa noite, em casa do velho. Não
sei se você sabe que o Melo é um violinista famoso. Um artista. Tenho conhecido
poucos violões tão bem tocados quanto o dele. Só que ele não é profissional nem
fez nunca muita questão de aparecer. Deve ter tocado em público poucas vezes.
Uma ou duas, até, se não me engano, no Municipal. Mas o homem é um colosso. O
filho está aí, confirmando o sangue... fazendo sucesso.
— Bem... eu vou indo... Tenho encontro
marcado. Fica a história para outra ocasião. Não leve a mal. Você sabe: eu sou
escravo.
— Ora essa! Claro! Até logo.
Palmadinha no ombro dele. Palmadinha no meu.
Chamei o elevador.
— É um caso único no gênero — continuou
Enéias para o companheiro. — O Melo tinha uma fazenda, creio que na Alta
Paulista. Passava lá enormes temporadas, sozinho, num casarão desolador. Era um
verdadeiro deserto. E como era natural, distração dele era o violão velho de
guerra. Hora livre, pinho no braço, dedada nas cordas. No fundo, um romântico,
um sentimental. O pinho dele soluça mesmo. Geme de doer. Corta a alma. É
contagiante, envolvente, de machucar. Ouvi-o tocar várias vezes. A Madrugada
que Passou, O Luar do Sertão, e tudo quanto é modinha sentida que há por aí
tira até lágrima da gente, quando o Melo toca...
— Completo! — gritou o ascensorista, de
dentro do elevador, que não parou, carregado com gente que vinha do décimo
andar, acotovelando-se de fome.
Apertei três ou quatro vezes a campainha,
para assegurar o meu direito à viagem seguinte.
Enéias continuava.
— E não é só modinha... Os clássicos. Música
no duro... Ele tira Chopin e até Beethoven. A Tarantela de Liszt é qualquer
coisa, interpretada pelo Melo... Pois bem... (Isto foi contado por ele, hein!
Não estou inventando. Eu passo a coisa como recebi.) Uma noite, sozinho na sala
de jantar, Melo puxou o violão, meio triste, e começou a tocar. Tocou sei lá o
quê. Qualquer coisa. Sei que era uma toada melancólica. Acho que havia luar,
ele não disse. Mas quem fizer o conto pode pôr luar. Carregando, mesmo. Sempre
dá mais efeito. Dá ambiente.
O elevador abriu-se. Quis entrar.
— Sobe!
Recuei.
— Você sabe: nessa história de literatura, o
que dá vida é o enchimento, a paisagem. Um tostão de lua, duzentão de palmeira,
quatrocentos de vento sibilando na copa das árvores, é barato e agrada
sempre... De modo que quem fizer o conto deve botar um pouco de tudo isso. Eu
dou só o esqueleto. Quem quiser que aproveite... O Melo estava tocando. Luz,
isso ele contou, fraca. Produzida na própria fazenda. Você conhece iluminação
de motor. Pisca-pisca. Luz alaranjada.
— A luz alaranjada não é do motor, é do...
— Bem, isso não vem ao caso... Luz vagabunda.
Fraquinha...
— Desce!
Dois sujeitos, que esperavam também,
precipitaram-se para o elevador.
— Completo!
— O Melo estava tocando...
Inteiramente longe da vida. De repente, olhou para o chão. Poucos passos
adiante, enorme, cabeluda, uma aranha caranguejeira. Ele sentiu um arrepio. Era
um bicho horrível. Parou o violão para dar um golpe na bruta. Mal parou, porém,
a aranha, com uma rapidez incrível, fugiu, penetrando numa frincha da parede,
entre o rodapé e o soalho. O Melo ficou frio de horror. Nunca tinha visto
aranha tão grande, tão monstruosa. Encostou o violão. Procurou um pau, para
maior garantia, e ficou esperando. Nada. A bicha não saía. Armou-se de coragem.
Aproximou-se da parede, meio de lado, começou a bater na entrada da fresta,
para ver se atraía a bichona. Era preciso matá-la. Mas a danada era sabida. Não
saiu. Esperou ainda uns quinze minutos. Como não vinha mesmo, voltou para a
rede, pôs-se a tocar outra vez a mesma toada triste. Não demorou, a pernona
cabeluda da aranha apontou na frincha...
O elevador abriu-se com violência, despejando
três ou quatro passageiros, fechou-se outra vez, subiu.
O Enéias continuava.
— Apareceu a pernona, a bruta foi chegando.
Veio vindo. O Melo parou o violão, para novo golpe. Mas a aranha, depois de uma
ligeira hesitação, antes que o homem se aproximasse, afundou outra vez no
buraco. "Ora essa!" Ele ficou intrigado. Esperou mais um pouco,
recomeçou a tocar. E quatro ou cinco minutos depois, a cena se repetiu.
Timidamente, devargazinho, a aranha apontou, foi saindo da fresta. Avançava
lentamente, como fascinada. Apesar de enorme e cabeluda, tinha um ar pacífico,
familiar. O Melo teve uma idéia. "Será por causa da música?" Parou,
espreitou. A aranha avançaria uns dois palmos...
— Desce!
— Eu vou na outra viagem.
— Dito e feito... — continuou Enéias. — A
bicha ficou titubeante, como tonta. Depois, moveu-se lentamente, indo se
esconder outra vez. Quando ele recomeçou a tocar, já foi com intuito de
experiência. Para ver se ela voltava. E voltou. No duro. Três ou quatro vezes a
cena se repetiu. A aranha vinha, a aranha voltava. Três ou mais vezes. Até que
ele resolveu ir dormir, não sei com que estranha coragem, porque um sujeito
saber que tem dentro de casa um bicho desses, venenoso e agressivo, sem
procurar liquidá-lo, é preciso ter sangue! No dia seguinte, passou o dia
inteiro excitadíssimo. Isto sim, dava um capítulo formidável. Naquela angústia,
naquela preocupação. "Será que a aranha volta? Não seria tudo pura
coincidência?" Ele estava ocupadíssimo com a colheita. Só à noite voltaria
para o casarão da fazenda. Teve que almoçar com os colonos, no cafezal. Andou a
cavalo o dia inteiro. E sempre pensando na aranha. O sujeito que fizer o conto
pode tecer uma porção de coisas em torno dessa expectativa. À noite, quando se
viu livre, voltou para casa. Jantou às pressas. Foi correndo buscar o violão.
Estava nervoso. "Será que a bicha vem?" Nem por sombras pensou no
perigo que havia ter em casa um animal daqueles. Queria saber se
"ela" voltava. Começou a tocar como quem se apresenta em público pela
primeira vez. Coração batendo. Tocou. O olho na fresta. Qual não foi a alegria
dele quando, quinze ou vinte minutos depois, como um viajante que avista terra,
depois de uma longa viagem, percebeu que era ela... o pernão cabeludo, o vulto
escuro no canto mal iluminado.
— (Desce!
— Sobe!
— Desce!
— Sobe!)
— A aranha surgiu de todo. O mesmo jeito
estonteado, hesitante, o mesmo ar arrastado. Parou a meia distância. Estava
escutando. Evidentemente, estava. Aí, ele quis completar a experiência. Deixou
de tocar. E como na véspera, quando o silêncio se prolongou, a caranguejeira
começou a se mover pouco a pouco, como quem se desencanta, para se esconder
novamente. É escusado dizer que a cena se repetiu nesse mesmo ritmo uma porção
de vezes. E para encurtar a história, a aranha ficou famosa. O Melo passou o
caso adiante. Começou a vir gente da vizinhança, para ver a aranha amiga da
música. Todas as noites era aquela romaria. Amigos, empregados, o
administrador, gente da cidade, todos queriam conhecer a cabeluda fã de O Luar
do Sertão, e de outras modinhas. E até de música boa. Chopin... Eu não sei qual
é... Mas havia um noturno de Chopin que era infalível. Mesmo depois de acabado,
ele ainda ficava como que amolentada, ouvindo ainda. E tinha uma predileção
especial pela Gavota, ela surgia. O curioso é que o Melo tocava todas as
noites. Havia ocasiões em que custava a aparecer. Mas era só tocar a Gavota,
ela surgia. O curioso é que o Melo se tomou de amores pela aranha. Ficou sendo
a distração, a companheira e Ela, com E grande. Chegou até a pôr-lhe nome, não
me lembro qual. E ele conta que, desde então, não sentiu mais a solidão
incrível da fazenda. Os dois se compreendiam, se irmanavam. Ele sentia quais as
músicas que mais tocavam a sensibilidade "dela"... E insistia,
nessas, para agradar a inesperada companheira de noitadas. Chegou mesmo a dizer
que, após dois ou três meses daquela comunhão — o caso já não despertava
interesse, os amigos já haviam desertado — ele começava a pensar, com pena, que
tinha de voltar para São Paulo. Como ficaria a coitada? Que seria dela, sem o
seu violão? Como abandonar uma companheira tão fiel? Sim, porque trazê-la para
São Paulo, isso não seria fácil!... Pois bem, uma noite, apareceu um camarada
de fora, que não sabia da história. Creio que um viajante, um representante
qualquer de uma casa comissária de Santos. Hospedou-se com ele. Cheio de prosa,
de novidades. Os dois ficaram conversando longamente, inesperada palestra de
cidade naqueles fundos de sertão. Negócios, safras, cotações, mexericos. Às
tantas, esquecido até da velha amiga, o Melo tomou do violão, velho hábito que
era um prolongamento de sua vida. Começou a tocar, distraído. Não se lembrou de
avisar o amigo. A aranha quotidiana apareceu. O amigo escutava. De repente,
seus olhos a viram. Arrepiou-se de espanto. E, num salto violento, sem perceber
o grito desesperado com que o procurava deter o hospedeiro, caiu sobre a
aranha, esmagando-a com o sapatão cheio de lama. O Melo soltou um grito de dor.
O rapaz olhou-o. Sem compreender, comentou:
— Que perigo, hein?
O outro não respondeu logo.
Estava pálido, numa angústia mortal nos olhos.
— E justamente quando eu tocava
a Gavota de Tárrega, a que ela preferia, coitadinha...
— Mas o que há? Eu não
compreendo...
E vocês não imaginam o
desapontamento, a humilhação com que ele ouviu toda essa história que eu contei
agora...
Uma resenha bem interessante sobre o filme "O Espanta Tubarões". Para quem ainda não assistiu ao filme, uma boa leitura para conhecer a obra. Para quem já assistiu, vale a pena conhecer um ponto d
O ESPANTA TUBARÕES
Renato Marques
O Espanta Tubarões (Shark Tale)
Tempo de Duração: 90 minutos
Ano de Lançamento: 2004
Site Oficial: www.sharktale.com
Estúdio: DreamWorks SKG / DreamWorks Animation / Pacific Data Images
Direção: Bibo Bergeron, Vicky Jenson e Rob Letterman
Elenco: Will Smith (Oscar), Paulo Vilhena (Oscar - versão brasileira),
Robert De Niro (Don Lino), Renée Zellweger (Angie), Jack Black (Lenny),
Angelina Jolie (Lola), Martin Scorsese (Sykes), Ziggy Marley (Ernie).
O Espanta Tubarões: tema adulto em “pele” infantil
Animação produzida pela Dreamworks lança mão de temas adultos e
cenários infantis para agradar pais e filhos.
Quando chegou aos
cinemas, ou ainda nos primeiros trailers, o filme “O Espanta Tubarões” (Shark
Tale, EUA, 2004) dava a clara impressão de que seria um clone pegando carona no
sucesso de “Procurando Nemo”. A história ocorria no oceano, onde peixes vivem
em grandes cidades, e, adivinhe, havia um tubarão vegetariano na história.
Parecia um clone. Mas não é. Diferente de Nemo, Espanta Tubarões, produzido
pela Dreamworks, a mesma que desenvolveu Shrek, pode ser considerado um filme
adulto, com temas muito mais complexos sendo tratados em cena.
O enredo gira
em torno da vida de Oscar (dublado por Will Smith), um peixinho pobre, metido a
malandro, que busca a fama. Desde o começo do filme, Oscar se vê metido em
enrascadas nada “infantis”. Deve dinheiro para o chefe, que tem ligação com a
máfia, e é perseguido por bandidos. Por aí já é possível perceber que, nas
entrelinhas, os debates são muito mais amplos do que a tempestuosa relação
entre pai e filho vivida por Nemo e Marlin.
De uma hora para outra,
porém, a vida de Oscar dá uma guinada e ele se torna o peixe mais famoso do
oceano. Sua vida, então, se torna uma seqüência de festas, entrevistas para a
TV e tudo o mais que se vê nas chamadas revistas de “celebridades”.
Naturalmente, as relações de Oscar são alteradas e – clichê – um novo amor
surge em sua vida. Tudo isso, porém, fica em segundo plano quando Lenny (Jack
Black), um tubarão branco vegetariano, que sabe o segredo da fama repentina de
Oscar, decide fugir de casa e se esconder com o peixinho-astro.
A fuga de
Lenny revela um conflito ainda maior, uma vez que ele é filho de Don Lino
(Robert De Niro), o chefão da máfia de tubarões. Muito mais do que a
alimentação de um tubarão, o debate gira em torno das escolhas de Lenny, que,
como se vê no filme, é muito diferente dos demais tubarões. Este tema, com
certeza, é um dos que não será absorvido de maneira igual por crianças e
adultos. Toda a trama, no entanto, leva a uma direção de confronto entre
antagonistas, fazendo com que, em determinado momento, diversos personagens
precisem tomar uma decisão que diz respeito à própria vida - bem diferente dos
enredos lineares dos tradicionais filmes infantis.
Ainda assim, é
impossível afirmar que “O Espanta Tubarões” é um filme exclusivamente para
adultos. Os cenários são bonitos, o ritmo prende e algumas passagens realmente
arrancam risos dos espectadores. Ao mesmo tempo, no entanto, como dito
anteriormente, não pode ser considerado um filme infantil, no sentido clássico
da expressão. E, em termos de excelência técnica, ainda fica um pouco distante
de seu co-irmão Shrek e, principalmente, Procurando Nemo.
Ao contrário de seu concorrente marinho, Espanta
Tubarões abandona qualquer semelhança com a realidade. Quem assistiu ao making
of de Procurando Nemo deve ter percebido a preocupação da equipe da Pixar em
fazer parecer real um filme de fantasia. No caso da história de Oscar, essa
preocupação inexiste. Os peixinhos parecem caricaturas de seus dubladores e
seus escamas têm o formato de roupas, de acordo com a personalidade de cada um.
Fique atento aos movimentos de Oscar, um Will Smith perfeito (em português, a
dublagem é de Paulo Vilhena) e de Lola, uma sensual peixinha dublada por
Angelina Jolie.
• Identifique a obra: coloque os dados bibliográficos essenciais do livro ou artigo ou a ficha técnica da obra que você vai resenhar;
• Identifique o autor: fale brevemente da vida e de algumas outras obras do escritor ou pesquisador;
• Apresente a obra: situe o leitor descrevendo em poucas linhas todo o conteúdo do texto a ser resenhado;
• Descreva a estrutura: fale sobre a divisão em capítulos, em seções, sobre o foco narrativo ou até, de forma sutil, o número de páginas do texto completo;
• Descreva o conteúdo: aqui sim, utilize de 3 a 5 parágrafos para resumir claramente o texto resenhado;
• Analise de forma crítica: nessa parte, e apenas nessa parte, você vai dar sua opinião. Argumente baseando-se em teorias de outros autores, fazendo comparações ou até mesmo utilizando-se de explicações que foram dadas em aula. É difícil encontrarmos resenhas que utilizem mais de três parágrafos para isso, porém não há um limite estabelecido. Dê asas ao seu senso crítico.
• Recomende a obra: você já leu, já resumiu e já deu sua opinião. Agora é hora de analisar para quem o texto ou obra realmente é útil (se for útil para alguém). Utilize elementos sociais ou pedagógicos, baseie-se na idade, na escolaridade, na renda etc.
Abaixo, posto um vídeo bastante interessante. De ceta forma, a animação apresenta um pouco daquela postura relativista existente na nossa sociedade.
FICHA TÉCNICA
Título Original: For The Birds
Título Nacional: Coisas de Pássaros
Gênero: Animação
País de Origem: Estados Unidos
Duração: 00:03:00
Ano Lançamento: 2000
Diretor(a): Ralph Eggleston
Elenco: Ralph Eggleston
Sinopse: Um grupo de passarinhos empoleirados em um fio de telefone se irritam com a chegada de uma grande ave desengonçada. Também conhecido como "Para os Pássaros".
Sinopse: Um grupo de passarinhos empoleirados em um fio de telefone se irrita com a chegada de uma grande ave desengonçada.
Com a boca no trombone!
Se você achava que a Pixar não conseguiria mais surpreender o espectador na produção de um curta metragem depois de Partly Cloudy e deBurn-E estava enganado. Junto com a sua sensacional equipe, Ralph Eggleston criou uma divertida animação: For the birds (Para os pássaros).
Fez-me mais uma vez pensar que ser diferente pode ser divertido e que não devemos julgar os outros por sua aparência. A ninhada não gostava do outro pássaro porque ele era diferente. Logo, foi rejeitado. No final, o bando acaba “recebendo na mesma moeda” após ser arremessado para o alto e ter ficado diferente; no processo, perderam suas penas.
Só mudaria a música para um som mais perspicaz, para dar à animação mais características da diferente ave. O que mais me chamou atenção foi o formato dos personagens: os passarinhos que formavam a revoada tinham forma arredondada, pareciam uma bola de futebol ambulante; já o outro, era comprido e mais parecia um palito de churrasco. Foram três minutos resumidos em comédia e diversão.
O atrapalhado pássaro, exuberante, literalmente gigante em relação à ninhada, azul, com personalidade animada, foi motivo de riso por sua aparência para os outros pássaros pequenos, fracos e também azuis.
A ave estrangeira pousou sobre os fios de telefone na companhia do bando. Eles torciam para o desengonçado cair.
Tornou-se realidade o desejo deles. O pássaro escorregou bem próximo ao chão enquanto seu peso esticava o fio, criando um efeito de “arco e flecha”, logo os menores foram arremessados para o alto, caindo assim suas penas devido à velocidade desse arremesso.
Muito bom para refletir. Deve-se ter muito cuidado na análise do conteúdo do curta. É engraçado e bem direto. Apesar de muito breve, tem-se um assunto tratado de forma tranquila e divertida. Achei interessante.
É um ótimo vídeo para resenhar e ver também. Recomendaria, com certeza, à parte de ensinos terapêuticos, por ser um vídeo que demonstra uma orientação que deve ser seguida ao longo da vida: respeitar as diferenças; às crianças e adolescentes pelo mesmo motivo; e às escolas para uma atividade como a produção de uma resenha ou encenação nas aulas de teatro, por exemplo.
Este conto de Machado de Assis apresenta um título intrigante: Suje-se gordo. Vale a pena ler. Primeiro, porque é um conto do grande Machado de Assis, um representante inigualável do movimento literário Realista no Brasil. Segundo, porque trata-se de um texto no qual a vírgula desempenha um papel importantíssimo para a compreensão do título, que é esclarecido após uma leitura atenta do conto. Deleitem-se com o texto. Publico também o link para o YouTube no qual você pode acompanhar a leitura dramatizada do conto por Matheus Nachtergaele. Contos da Meia Noite: Suje-se gordo! (link 1), Contos da Meia Noite: Suje-se gordo! (link 2)
Uma noite, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do Teatro de São Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.
— Fui sempre contrário ao júri, — disse-me aquele amigo, — não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho; “Não queirais julgar para que não sejais julgados”. Não obstante, servi duas vezes. O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da Conceição.
Tal era o meu escrúpulo que, salvo dois, absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dois processos eram mal feitos. O primeiro réu que condenei, era um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda, os olhos mortos, com tal palidez que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada.
Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância de ser a estréia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu dois anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do Conselho, que era eu.
Não digo o que se passou na sala secreta; além de ser secreto o que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor ficasse também calado, confesso. Contarei depressa; o terceiro ato não tarda.
Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinqüente. O processo foi examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava quieto. No fim, como os votos assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou coisa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o que votara pela negativa, — proferiu algumas palavras de defesa do moço. O ruivo, — chamava-se Lopes, — replicou com aborrecimento:
— Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.
— Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo.
— Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!
“Suje-se gordo!” Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a frase, ao contrário; nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.
Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-me entendê-la. “Suje-se gordo!” era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada. Achei esta explicação na esquina da Rua de São Pedro; vinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele; não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim são as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos versos.
Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.
Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado, o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus, Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci; pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes.
— Como se chama? Perguntou o presidente.
— Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.
Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências; não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui com verdade que todas essas circunstâncias me impediram de acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas coisas me escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim. Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da boca.
Seguiu-se a leitura do processo. Era uma falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me impressionou muito, o inquérito, os documentos, a tentativa de fuga do caixa e uma série de circunstâncias agravantes; por fim o depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o teto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros.
Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes, os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.
Enquanto os dois oradores falavam, vim pensando na fatalidade de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que votara a condenação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico: “Não queirais julgar, para que não sejais julgados”. Confesso-lhe que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a cometer algum desvio de dinheiro, mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém ou ser caluniado de desfalque. Aquele que julgava outrora, era agora julgado também.
Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo Lopes: “Suje-se gordo!” Não imagina o sacudimento que me deu esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: “Suje-se gordo!” Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. “Suje-se gordo!” Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!
Idéias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer-lhe aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos, uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dois jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A diferença da votação era tamanha, que cheguei a duvidar comigo se teria acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de consciência. Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime, não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os repelões voltam. O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! Suje-se magro! Suje-se como lhe parecer! O mais seguro é não julgar ninguém... Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, deixou-nos um inspiradíssimo poema, o qual certa vez foi interpretado em uma novela televisiva. Deleitem-se com a leitura do poema e a interpretação de Osmar Prado.
Poema em linha reta
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
"O livro da natureza foi escrito exclusivamente com figuras e símbolos matemáticos" (Galileu).
Eis a minha opinião:
Galileu foi preciso ao escrever seu pensamento. Ao lê-lo, percebemos uma frase exata em sua forma e conteúdo. Temos uma frase com 70 letras, agrupadas respeitando-se uma lógica linguística. Desse agrupamento, obteve-se um conjunto composto por 12 palavras. Ambos os conjuntos - de letras e de palavras - são compostos por um número par de elementos. 7 são os dias da semana, 7 são as notas musicais, 7 são os selos do Apocalipse e 7 são as letras que ordenadas compõem o nome do autor do pensamento: G A L I L E U. A natureza por si só é exata desde a sua origem. Não há brechas para imprecisões, pois tudo nela existe por alguma razão. A natureza é tão precisa quanto a matemática. A lógica e as leis combinatórias guiam-nos na ordenação das letras e palavras da língua para a exata expressão de nossa vivência neste mundo.