segunda-feira, 24 de março de 2014

... ENEM QUE A VACA TUSSA!

Para hoje temos um texto muito interessante que foi escrito por Flávio, do blog Opiniaum. Parabéns, Flávio. É um bom texto. Boa leitura.

... ENEM QUE A VACA TUSSA!



Não é de hoje que os erros de português no ENEM são matéria de piadas. Já há alguns anos, a gente recebe e-mails com “as pérolas do ENEM”; ou você nunca recebeu algum?

Agora, uma coisa é caçoar dos erros dos alunos, que só comprovam o péssimo nível do ensino no Brasil, principalmente o ensino público. Uma situação que o governo resolveu corrigir, instituindo o sistema de cotas para o ingresso nas universidades, uma providência inédita: em vez de melhorar o nível do ensino, resolve piorar o nível dos aprovados.

Outra situação (e bem mais grave) é quando vejo, como estou vendo agora na internet, que redações com erros como “enchergar”, “trousse” e “rasoável”, tiraram nota máxima no ENEM. Francamente: será que o governo não enxerga que erros assim não são razoáveis? Quem trouxe para o MEC esse sistema de correção de provas?

Mais: vejo que um aluno fez 560 pontos na redação, copiando uma receita de miojo para encher espaço, quando o tema era, pelo que pude entender, movimentos migratórios para o Brasil. Meus parabéns ao cara, pela criatividade; mas, afinal, a prova é de redação ou de culinária?

Eu, que ganho a vida como redator, sinto os cabelos arrepiados com essas barbaridades; e, confesso, fico preocupado com o futuro da minha profissão e do nosso País. Do jeito que a coisa vai, acho que logo teremos o Tiririca escrevendo um livro didático para o MEC. É só o que falta.

Pelo jeito, acho que o governo resolveu, mesmo, oficializar a ignorância e o baixo nível do ensino. Mas, pensando bem, afinal pra que o cara precisa estudar, se tem sistema de cotas?  Ou trabalhar, se tem Bolsa Família? São os milagres do PT.

Com este descaso pela educação, não vejo como o Brasil possa sair do subdesenvolvimento; nem que a vaca tussa, como diria meu avô.

Coitado do português. E dos brasileiros!

quinta-feira, 20 de março de 2014

Motel, de Luiz Fernando Veríssimo

MOTEL
Luiz Fernando Veríssimo

Mirtes não se aguentou e contou para a Lurdes:
- Viram teu marido entrando num motel.
A Lurdes abriu a boca e arregalou os olhos. Ficou assim, uma estátua de espanto, durante um minuto, um minuto e meio. Depois pediu detalhes.
- Quando? Onde? Com quem?
- Ontem. No Discretíssimu's.
- Com quem? Com quem?
- Isso eu não sei.
- Mas como? Era alta? Magra? Loira? Puxava de uma perna?
- Não sei, Lu.
- Carlos Alberto me paga. Ah, me paga.
Quando o Carlos Alberto chegou em casa a Lurdes anunciou que iria deixá-lo e contou por quê.
- Mas que história é essa, Lurdes? Você sabe quem era a mulher que estava comigo no motel. Era você!
- Pois é. Maldita hora em que eu aceitei ir. - Discretíssimu's! Toda a cidade ficou sabendo. Ainda bem que não me identificaram.
- Pois então?
- Pois então, que eu tenho que deixar você. Não vê? É o que todas as minhas amigas esperam que eu faça. Não sou mulher de ser enganada pelo marido e não reagir.
- Mas você não foi enganada. Quem estava comigo era você!
- Mas elas não sabem disso!
- Eu não acredito, Lurdes! Você vai desmanchar nosso casamento por isso? Por uma convenção?
- Vou!
Mais tarde, quando a Lurdes estava saindo de casa, com as malas, o Carlos Alberto a interceptou. Estava sombrio:
- Acabo de receber um telefonema - disse. - Era o Dico.
- O que ele queria?
-Fez mil rodeios, mas acabou me contando. Disse que, como meu amigo, tinha que contar.
- O quê?
- Você foi vista saindo do motel Discretíssimu's ontem, com um homem.
- O homem era você!
- Eu sei, mas eu não fui identificado.
- Você não disse que era você?
- O que? Para que os meus amigos pensem que eu vou a motel com a minha própria mulher?
- E então?
- Desculpe, Lurdes, mas...
- Mas o quê???
- Vou ter que te dar uma surra...

CONCLUSÃO: DEVEMOS CUIDAR APENAS DA NOSSA SAÚDE, POIS DA NOSSA VIDA, TODO MUNDO CUIDA.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Dia Internacional da Mulher

Amanhã é comemorado o Dia Internacional da Mulher. Houve - e há - várias mulheres que fizeram - e fazem - coisas grandiosas na História da Humanidade. Abaixo, confiram uma música que foi feita para uma mulher brasileira chamada Zuzu Angel.


ANGÉLICA

Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar o tormento
Que fez meu filho suspirar
Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino?
Queria cantar por meu menino
Que ele não pode mais cantar

(De Chico Buarque e Miltinho (MPB-4) para a estilista Zuzu Angel, morta em circunstâncias misteriosas, depois de enfrentar a ditadura militar para encontrar o corpo de seu filho, Stuart Angel Jones, torturado, assassinado e "desaparecido" pelo governo militar, nas dependências da Aeronáutica, década de 1970.)

Fontes: Letra da Música "Angélica" , História da vida de Zuzu Angel , Instututo Zuzu Angel , Chico Buarque - Angélica .

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Vida Maria

Para refletir, um curta-metragem muito interessante que fala sobre um círculo vicioso que precisa ser quebrado.


FICHA TÉCNICA (link 1 e link 2)
Título: Vida Maria
Data de finalização: set/2006
Tempo total: 08min 34seg
Diálogos e comentários: com diálogos
Gênero: animação
Técnica utilizada: computação gráfica 3d
Formato: 35mm colorido, janela 1.85, dolby 5.1, 24 quadros/seg
Direção, computação gráfica, roteiro original, edição, vozes: Márcio Ramos
Produção: Joelma Ramos
Produção executiva: Isabela Veras (Trio Filmes)
Música “Vida Maria”: Hérlon Robson
Storyboard e concepts: Michelângelo Almeida e Roberto Fernandez
Efeitos sonoros: Danilo Carvalho
Mixagem de som: Érico Paiva “Sapão”
Tradução inglês: Laura Lee
Contabilidade: Silvério Neto
Finalização: Link Digital
Trascrição ótica/sinc de som: Rob Filmes
Revelação e cópias: Labo Cine
Apoio: Colorgraf, Softimage Cat e Silicontech do Brasil
Co-produção: Viacg e Trio Filmes
Patrocínio: Governo do Estado do Ceará (Secretaria da Cultura) e 3º Prêmio Ceará de Cinema e Vídeo.

Bom vídeo.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Cordel da enfermagem

Certa vez recebi um desafio de uma amiga enfermeira: falar sobre enfermagem na forma de cordel. Foi um desafio de respeito para mim, pois sei tão pouco - ou quase nada - sobre enfermagem. Ela tinha um trabalho para apresentar em uma certa disciplina na faculdade e a professora exigiu que o resultado da pesquisa fosse apresentado nesse formato poético. Parei por alguns instantes, fiz umas perguntas a ela e - não sei se prestou ou não - o resultado final é este que vocês podem conferir abaixo.

O que sei sobre enfermagem

Cara professora,
colegas de estudo
e demais que aqui estão,
Peço a vocês licença
Para falar de uma profissão
que é nobre em sua essência
E ajuda a salvar mais de um milhão.

Vamos discutir sobre a enfermagem
Uma sagrada profissão
Desde os primórdios da doença
Que o enfermeiro cede atenção
No hospital ajuda ao paciente
A ficar bom de coração.

Antes de iniciar,
Preciso de inspiração
Invoco os sagrados poetas,
Às ninfas faço alusão.
Preciso da ajuda de todos
Para com maestria
Falar de uma tão nobre profissão.

Para ser enfermeiro,
É preciso muito estudo
Amor acima de tudo
Cuidar do outro sobretudo
Pois um enfermeiro é ninguém
Se não tiver dedicação em tudo.

Enfermagem é cuidar, educar e orientar
Paciente, família e comunidade
Dessa forma é que se dá
Uma grande contribuição
À sociedade em que se está,
Estimulando o cuidado e a prevenção,
Trazendo qualidade de vida à população.

A enfermagem teve início
Nos primórdios da civilização
Desde que o homem é homem
Que existe essa profissão
Foi ajudando em casa
Que primeiro se cuidou da população.

Teve uma fase que até
A igreja estava no meio
Práticas de saúde mágico-sacerdotais
Vixe! Era um aperreio
Se misturava o que era do demônio
Com um simples devaneio.

Essa foi a fase do empirismo
Que foi antes da especulação filosófica
Mais tarde foi que surgiram
As escolas mais metódicas
Ensinavam a arte de curar
Foi no sul da Itália e Sicília
E depois começou a se espalhar.

O enfermeiro pode ser assistente,
Gerente e/ou pesquisador
Isso ele decide,
Às vezes, inspirado pelo professor
Contudo ele não sabe
Que na saúde e na pobreza
O salário é sofredor.

Eu estou no Osvaldo Cruz
Observando para aprender
É um desafio para mim
Mas hei de vencer
Há dias que só Deus
É capaz de me compreender.

No Osvaldo estudo semiologia,
Que é o mesmo que propedêutica.
Nela analisamos os sinais
E os sintomas das doenças animais.

Estudo também a semiotécnica
Ou técnicas do exame clínico
Que utilizo em minha prática médica.
No exercício da enfermagem,
Durante minha abordagem,
Faço tudo como esteta.

11 homens e um segredo
É assim nossa constituição
Somos uma equipe grande
Na qual todos entram em ação
Citarei todos os nomes
Por favor, prestem atenção.

Jacyara, Winny e Carolina
São três que o nome não rima.
Carmem, Débora e Wellinja
Pra rimar tem que ser um ninja.

Marcos Alexandre da Silva Ferreira
Esse passou na peneira
É o único homem do grupo
É o que está solto na bagaceira
Um homem entre dez mulheres
Pense numa zoeira!

Maria Tathiane, Bárbara e Fernanda
Mais três sem as quais nosso time não anda.
Por último tem Ericka Noêmia
A menina que é boêmia.
11 homens e um segredo?
Ninguém sabe o que a gente esconde
Mas os 11 estão revelados
Todos acima, nome a nome.

Agora finalizamos por aqui
Este singelo e humilde cordel
Esperamos que a professora e os colegas
Tenham gostado do que está neste papel
Agora eu me despeço,
Peço um aplauso caloroso
E à professora, um 10 de sucesso.

Esse foi um pouco
Do que eu sei sobre
Isso, a enfermagem, tenho dito.
Garanto que queria
Incluir mais que o que aqui foi dito
Liberdade para escrever
Só nas palavras que escolhi
Ou talvez, quem sabe
Nem nisso.

Eu tenho um espaço que devo
Respeitar neste papel
Inteligente será
Cumprí-lo e ser fiel. Melhor que falar um
"Kilo" e não ganhar uns
Aplausos ao final do meu cordel.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Mãos de Giz

Para o dia dos professores, uma postagem para homenagear uma tão nobre profissão.


Mãos de Giz

Outra vez, olho minhas mãos.
Mãos coloridas: azuis, amarelas,
verdes e brancas... eterno branco.

Sinto uma alegria,
e a lágrima visita
os olhos.

Nos olhos, pó.
Na lágrima, pó.
Nas roupas, nos pelos e na língua, pó.

E nas mãos? Puro pó.
Elas desenham, com pó, a sabedoria da Gramática.
É a gramática da vida.

Todos os dias me emociono,
na sala de aula ou fora dela,
quando olho minhas mãos.

Mãos coloridas como a bandeira do meu país.
País que tentamos, com as mãos sujas de giz,
tirar do pó.

(Prof.° Marcos Souza – Poema publicado na página 03 da Revista Construir Notícias)

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O Homem de Cabeça de Papelão, de João do Rio


O Homem de Cabeça de Papelão

João do Rio

No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social.
O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!
Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.
Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.
Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.
Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.
— Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.
— Mas não quero ser nada disso.
— Então quer ser vagabundo?
— Quero trabalhar.
— Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.
— Eu não acho.
— É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.
Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!
Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:
— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...
O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:
— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.
— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?
Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.
No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado.
Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.
— É doido, mas bom.
Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.
— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...
— É da tua má cabeça, meu filho.
— Qual?
— A tua cabeça não regula.
— Quem sabe?
Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.
— Só caso se o senhor tomar juízo.
— Mas que chama você juízo?
— Ser como os mais.
— Então você gosta de mim?
— E por isso é que só caso depois.
Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.
Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.
— Traz algum relógio?
— Trago a minha cabeça.
— Ah! Desarranjada?
— Dizem-no, pelo menos.
— Em todo o caso, há tempo?
— Desde que nasci.
— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem...
Antenor atalhou:
— E o senhor fica com a minha cabeça?
— Se a deixar.
— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...
— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.
— Regula?
— É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.
Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.
Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.
Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.
— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!
Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.
— Há tempos deixei aqui uma cabeça.
— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.
— Ah! fez Antenor.
— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim...
— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.
— Mas a minha cabeça?
— Vou buscá-la.
Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.
— Consertou-a?
— Não.
— Então, desarranjo grande?
O homem recuou.
— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.
Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.
— Faça o obséquio de embrulhá-la.
— Não a coloca?
— Não.
— V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.
Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.
— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.
— Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.
Antenor ficou seco.
— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.
E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.



O texto acima foi extraído do livro "Antologia de Humorismo e Sátira", organizada por R. Magalhães Júnior, Editora Civilização Brasileira — Rio de Janeiro, 1957, pág. 196.